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Os malefícios do crossdressing

by Sandra M. Lopes|Published 2015/11/15|4 comments


[justify]Uma grande parte das crossdressers MtF que conheço, sejam elas fetichistas ou não, tendem a confessar que sempre sonharam ser crossdressers desde pequenas. Não interessa agora analizar as razões — seja pelo prazer de sentir a roupa feminina no seu corpo, seja por uma questão de quererem atraír parceiros masculinos, seja apenas por se auto-identificarem com o género feminino. O que interessa (pelo menos para este artigo) é o tempo que passou desde o momento em que desejaram vestir roupas do género oposto. E as consequências que isto tem…


Há, evidentemente, excepções — pessoas que só muito tarde, na sua idade adulta, é que começaram a vestir-se do género com que se identificam — mas, regra geral, a narrativa mais frequente começa na mais tenra idade. Por vezes é só o desejo de se vestir de mulher, mas o mais frequente é experimentarem as roupas ou os sapatos da mãe ou das irmãs. Episódios normalmente raros e desconexos, pelo menos na maioria dos casos. Noutros pode ter havido um período mais prolongado, na infância, onde havia o hábito de experimentar toda a roupa feminina que houvesse em casa…

Depois existem muitas variantes na narrativa. Na maior parte dos casos, no entanto, é mais frequente que, a partir de uma certa idade, se instale a vergonha: não é suposto os meninos andarem a vestir roupas de meninas. Ou a mãe descobre a «brincadeira» e coloca um ponto final, ou é o próprio, confuso, que acaba por abandonar a roupa feminina, secretamente invejando todas as meninas que conhece, e não percebendo muito bem porque é que não pode usar as roupas e o cabelo que elas têm.

Em muitos casos, infelizmente, também surgem traumas de infância, com relações sexuais forçadas por um parente próximo, ou um amigo da família. Mas isto não sucede em todos os casos. Pode acontecer ou não. Infelizmente, a pedofilia em Portugal tem raízes culturais muito fortes, por mais que queiramos encobrir o assunto…

Seja como for, a verdade é que normalmente se passam muitos anos desde esses episódios de infância e a altura em que a pessoa se assume como crossdresser, vestindo roupas de mulher com consciência porque o faz, de uma forma regular (ou pelo menos tantas vezes quanto as oportunidades lhe permitam).

Para algumas isto pode acontecer nas fases finais da adolescência; não conheço pessoalmente nenhum caso em Portugal (há algumas pessoas assim, que contam entre a lista de «amigas» no Facebook, mas ainda não as conheci pessoalmente), mas por lá fora vêem-se muitos casos assim, especialmente nos últimos tempos. É natural: há vinte anos atrás apareceram as primeiras páginas de crossdressers portuguesas na Internet. Antes disso era difícil, em Portugal, ter-se acesso a explicações sobre o assunto. Claro que haviam crossdressers antes disso (sempre as houve!). Mas tinham acesso bastante limitado e difícil a informação.

A Internet, evidentemente, veio mudar isso tudo. Mas para as crossdressers de meia-idade como eu, passámos a maior parte da nossa vida — ou pelo menos uma parte substancial da nossa vida — sem termos qualquer compreensão do que nos estava a acontecer, e porque é que acontecia.

E, evidentemente, não tínhamos ninguém a quem perguntar. Se nós já estávamos na ignorância do que é que nos «forçava» ao crossdressing, muito menos poderíamos ser esclarecidas por pais, irmãos, familiares, ou amigos. Não só ninguém à nossa volta sabia alguma coisa sobre o assunto, como também havia outro factor adicional que nos limitava: a vergonha. Claramente não éramos «normais», no sentido de que mais ninguém alguma vez falava sobre esse tipo de assuntos.

Talvez, com sorte, encontrássemos um vídeo pornográfico sobre sissyfication, ou eventualmente víssemos uma revista a falar sobre transexualidade. No meu caso, lembro-me de ter lido na comunicação social alguns artigos sobre a Roberta Close. Fiquei logo dias sem dormir só a pensar no assunto, pois nem sabia que havia essa possibilidade, de pessoas que nasceram no sexo masculino poderem passar o tempo todo a apresentar-se em público como sendo mulheres — e até poderem fazer cirurgias e tudo. Na altura era novinha, muito ingénua, e não percebia bem como é que essas «coisas» funcionavam. Para mim era tudo muito misterioso e incompreensível…

Mas o que começou a acontecer nessa idade foi um mecanismo que é frequente em muitas de nós: rejeição. Repressão dos nossos sentimentos mais profundos. E havia, obviamente, boas razões para isso: não só teríamos dificuldades em aceitar-nos a nós próprias, como sabíamos perfeitamente que ninguém nos iria aceitar também.

Aqui, evidentemente, as narrativas divergem muito de pessoa para pessoa. O certo é que algumas manifestaram esse desejo logo muito cedo, junto dos pais — com consequências provavelmente negativas, incluindo, infelizmente, violência física (mas a violência verbal também deixa marcas para a vida). Outras, temendo justamente essa violência física ou verbal, mantiveram em segredo. E fizeram-nos durante muito, muito, muito, muito tempo.

Algumas chegaram a um ponto em que não aguentaram mais, «explodiram», e eventualmente no início da idade adulta (e hoje em dia isso acontece cada vez mais cedo) iniciaram logo o seu processo de transição. Se olharmos para as (poucas) estatísticas que conhecemos sobre o assunto, sabemos que esse número é francamente reduzido. Em Portugal, são apenas algumas centenas de pessoas. Mesmo a Caitlyn Jenner, no seu discurso nos prémios ESPY, fala apenas de «milhares de pessoas»:



Todas as restantes pessoas pura e simplesmente nunca optam pela transição. E é difícil de estimar quantas são, pois a esmagadora maioria não responde a inquéritos (pela mesma razão que reprimem os seus sentimentos — não querem que ninguém desconfie!). Por isso só se pode estimar, e as alegadas melhores estimativas (que valem pelo que valem) acreditam que a percentagem de população masculina que é crossdresser ou transgénero é semelhante à percentagem que é homosexual, ou seja, cerca de 6% — o que para Portugal, daria cerca de 300.000 pessoas. Acho um exagero!

Seja como for, penso que é legítimo afirmar que a percentagem de pessoas que reprimem — muitas vezes toda a sua vida — esta sua faceta de crossdresser/transgénero é substancialmente superior, por várias ordens de grandeza, daquelas que efectivamente se «revelam» publicamente. Afirmo isto apenas por uma razão: enquanto que o número das pessoas transgénero que se revelam é conhecido — pois são «capturadas» pelas estatísticas do Serviço Nacional de Saúde — os que nunca se revelam não aparecem em estatística nenhuma. Nem sequer aparecem nas consultas de psicologia. Não há uma única entidade oficial que possa sequer coligir essa informação de forma anónima e segura — por exemplo, associações sem fins lucrativos de apoio a crossdressers, como existem lá fora. A verdade é que não temos ideia nenhuma de quantos são.

Só mesmo quando alguém neste espectro — que vai do crossdressing raro e ocasional à sensação de que nasceu no corpo errado, passando por todos os estados intermédios — finalmente se decide a tomar uma decisão àcerca da sua situação é que aparece nas estatísticas. E, nesse caso, estamos a falar já em casos muito extremos de ansiedade e depressão.

Os tais 6% (se esse número estiver correcto), evidentemente, incluem o vasto número de crossdressers fetichistas. Estes casos ainda são mais difíceis de capturar nas estatísticas, porque evidentemente que ninguém anda a contar os seus fetiches em público, ou em inquéritos. Regra geral, no entanto, as fetichistas encontram-se no espectro mais «saudável», se me é permitida a expressão: estão perfeitamente satisfeitas com a sua condição e vêem no crossdressing apenas uma forma de obter prazer sexual. Mas normalmente não sentem qualquer ansiedade ou frustração se não fizerem crossdressing de uma forma regular. Há evidentemente excepções (como em tudo), mas esta é a regra geral que tenho vindo a observar.

Recapitulando as classificações…
Há por vezes uma certa ideia errada de que as crossdressers fetichistas pouco mais se interessam por vestir umas cuequinhas, umas meias de liga, e pronto, já está. Uma ou outra talvez até esteja disposta a vestir um vestidinho sexy qualquer, e a comprar uma peruca de €5 nos chineses. Mas isso não é verdade. Algumas crossdressers fetichistas são obsessivas com a sua auto-imagem feminina e podem perder horas a arranjar-se para que sejam indistinguíveis de qualquer mulher genética; comportam-se de forma feminina e têm como objectivo emularem uma mulher genética de todas as formas possíveis. Só assim se sentem confortáveis em obter prazer com um parceiro sexual (normalmente masculino). Conheço uma crossdresser portuguesa assim, cuja «ilusão» é tão perfeita que ela envia a potenciais parceiros vídeos dela, muito bem filmados, em que faz poses eróticas (ou mesmo pornográficas!) seminua, mas sem que se consiga perceber os seus genitais — ou mesmo que esteja activamente a escondê-los, de tão naturais e femininas que são as poses. E evidentemente que não é um caso único.

Também não é inteiramente verdade que nenhuma crossdresser fetichista sofra por não se conseguir vestir de mulher. De entre os vários comportamentos associados a uma líbido mais activa que a média — que habitualmente é o caso para as crossdressers fetichistas — uma circunstância típica é o sofrimento por falta de relações sexuais (com a frequência desejada). Nestes casos, é evidente que as crossdressers fetichistas sofrem precisamente da mesma forma que qualquer outra pessoa que necessite de uma maior frequência de actividade sexual que a sua vida lhe permita, e isto pode naturalmente conduzir a casos de ansiedade e depressão. De notar que são raras as crossdressers fetichistas que pensam sequer consultar um psicólogo nesta situação, porque se envergonham de contar a sua situação a terceiros (o que é comum, na realidade, à esmagadora maioria de crossdressers). Curiosamente, se o fizessem, um dos tratamentos possíveis para a ansiedade causada pela frustração de ausência de relações sexuais é justamente a tomada de bloqueadores de testosterona, o que tem um efeito feminizante no corpo, coisa que provavelmente muitas crossdressers adorariam tomar…

Fora do espaço do fetichismo propriamente dito, existem imensas razões para o crossdressing que nada têm a ver com o desejo de relações sexuais, e são justamente estes os casos mais difíceis de compreender por terceiros. Aliás, nos dias que correm, pelo menos em países mais sofisticados que o nosso, existe alguma aceitação do crossdressing como forma de fetiche — pois existem tantos fetiches, que o crossdressing, sendo um dos mais populares (não está no topo da lista, mas também não anda lá muito longe), é bastante bem tolerado, pelo menos em certos meios. Em Portugal já requer uma certa abertura de espírito. No entanto, por essa Internet fora, encontram-se muitos e bons exemplos, principalmente de homens, que têm grande apetência por terem relações sexuais com crossdressers. Uma explicação dada por um amigo meu (cujo nome vou obviamente omitir, mas sei que ele está a ler isto!) é que é muito mais fácil encontrar parceiros sexuais que sejam do género biológico masculino do que do feminino; para certos homens, pois, ter sexo com uma crossdresser pode ser muito mais fácil do que encontrar uma parceira do género biológico feminino. Para outros pura e simplesmente trata-se do fetiche complementar, ou seja, tal como há homens que se vestem de mulher para atrairem parceiros masculinos, há igualmente homens que procuram homens que se vestem de mulher (na realidade, e pelo que observo, há muito mais procura do que oferta!).

Mas uma crossdresser MtF que não o faça por razões de satisfação sexual com um parceiro é raramente compreendida! Na realidade, a maioria dos homens interessados em relações com crossdressers acharão que não existe nenhuma outra razão para o crossdressing senão o prazer sexual, pelo que acharão que se trata apenas de alguém que «se está a fazer de difícil» (o que até pode proporcionar um aumento do desejo — o fruto proibido [ou de difícil acesso] é aquele que é mais desejado).

No entanto, uma grande parte das crossdressers fazem-no apenas por auto-satisfação erótica — um dos significados da palavra «fetiche», no contexto médico e académico, é a orientação do desejo e da satisfação sexuais para objectos inanimados (ou partes do corpo não necessariamente associadas com a actividade sexual, como sejam os pés). Para este tipo de crossdressers não existe necessidade de um parceiro para haver satisfação sexual; antes bem pelo contrário, o parceiro não faz qualquer sentido, dado que a auto-satisfação neste caso não tem a ver com relações sexuais propriamente ditas. Tem, isso sim, a ver com o desejo de sentir roupas femininas (e maquilhagem, e uma cabeleira, e unhas pintadas…) no próprio corpo.

Nalguns casos o objecto do fetiche é mesmo só a roupa, acessórios, maquilhagem… (fala-se aqui então de crossdressing erótico, ou auto-erótico, segundo uma classificação possível que tendo a seguir) Noutros casos, já a atracção não está nos objectos físicos em si, mas no despertar de uma auto-imagem feminina que é construída com base na roupa, acessórios, etc. mas também no comportamento de acordo com o género feminino. Nestes casos — também conhecidos como crossdressing narcisista — o objecto de desejo e de satisfação sexual está associado à auto-imagem feminina (em que a roupa e os acessórios são os pilares para a construção dessa auto-imagem), e não a uma relação sexual. Estes casos ainda são mais incompreensíveis para o público em geral, que ainda consegue vagamente compreender a existência de um fetiche relacionado com a roupa feminina, mas não percebe em que medida é que «vestir-se de mulher» (sem qualquer desejo sexual de ter um parceiro) e comportar-se como uma mulher possa ser excitante.

Quando se abandona então de todo a questão puramente sexual, entramos no complexo mundo da transexualidade. Agora já não é a atracção sexual — mesmo que meramente na sua função masturbatória — que está no foco das atenções, mas sim a questão da identidade. Evidentemente que aqui existem finíssimas linhas divisórias, e a literatura especializada está cheia de exemplos aparentemente contraditórios que procuram explicar o mesmo fenómeno. Assim, há efectivamente pessoas que apresentam disforia de género e que passam por uma fase de crossdressing, acreditando que esta seja socialmente mais tolerável — até porque é feita em privado, ou pelo menos em separado da vida social activa, e quase sempre em segredo — mas que depois chegam à conclusão que tal actividade nunca é verdadeiramente satisfatória: os sintomas da disforia de género não desaparecem com a actividade de crossdressing. Noutros casos, a rejeição do próprio corpo, que está completamente fora de sincronia com a identidade de género, faz com que determinados transexuais nem sequer experimentem o crossdressing. Começam apenas a vestir-se de acordo com o género com que se identificam apenas após o início do período de transição, em que as alterações significativas provocadas pela terapia hormonal, conjugadas com a necessidade de fazer o teste de vida real, «obrigam» (muitas vezes pela primeira vez) a adoptar também as convenções sociais para o vestuário de acordo com o género com que se identifica.

Mas entre os dois extremos há todo o tipo de possibilidades. Talvez a principal distinção — mas que nem essa é consistente em todas as pessoas! — tenha a ver com a ênfase na actividade sexual (seja auto-erótica, seja com parceiros sexuais). Regra geral, se a líbido é elevada, e o desejo de fazer crossdressing pressupõe uma satisfação sexual (e que mesmo nos casos de auto-erotismo esta satisfação pode existir independentemente de haver ou não prática masturbatória, que é secundária), poderemos classificar a pessoa em questão mais sob a alçada do «crossdressing» propriamente dito, pois nestes casos o indivíduo vai classificar-se de acordo com o género masculino — com que se identifica e, em quase todos os casos, não pretende «abandonar», excepto eventualmente em fantasias e escapismos imaginados — e não apresenta, pois, disforia de género. No caso da transexualidade, independentemente da forma como esta se manifesta (expressão de género!), o indivíduo normalmente identifica-se com um género diferente daquele que lhe foi atribuído à nascença (ou identifica-se com ambos, ou nenhum), mas, estando impedido de se manifestar de acordo com essa sua identificação, tende a ter uma líbido mais baixa (ou mesmo nula). Mesmo a actividade do crossdressing, embora possa ser satisfatória sob o ponto de vista psicológico (e, como vimos, há muitos casos em que nem sequer satisfatória é), muitas vezes pode não dar qualquer satisfação do ponto de vista sexual (seja com ou sem parceiro).

Mecanismos de compensação e adaptação
Como lidam as crossdressers (e algumas pessoas com disforia de género) com a sua situação? O exemplo de Caitlyn Jenner é apenas um entre muitos: normalmente procuram afastar de si toda e qualquer suspeita de serem «diferentes», praticando actividades ou assumindo comportamentos tipicamente associados ao género que lhes foi atribuído à nascença. Embora isto não seja verdade para os chamados transexuais primários (aqueles que desde a mais tenra infância se identificam com o género oposto ao que lhes foi atribuído e que passam toda a sua vida — desde a infância à idade adulta — procurando desesperadamente para uma «solução» para a sua condição), nos restantes casos, este é o mecanismo de compensação habitual. Jenner optou por uma carreira no desporto, achando que assim poderia afastar de si qualquer suspeita. Casou-se quatro vezes e tem dez filhos, o que, para um observador externo, só pode ser sinal de virilidade e masculinidade (uma pessoa que seja homosexual até pode casar-se com uma pessoa do género oposto para «disfarçar» a sua homosexualidade, mas será muito raro que o faça vezes repetidas).

Nem todas as crossdressers (e pessoas transgénero) irão a tais extremos. No entanto, é frequente adoptarem comportamentos machistas, agressivos, por vezes até ridiculamente homofóbicos (e transfóbicos) quando estão em público. Optam por carreiras associadas claramente ao género que lhes foi atribuído à nascença — no caso MtF, que é o que eu estou a analisar mais de perto, podemos vê-los em empregos como agentes de segurança pública ou privada, são militares, construtores civis, condutores profissionais, etc. Têm hobbies ligados à actividade física; frequentemente mostram um interesse em actividades tipicamente masculinas, como futebol, automóveis, sexo, etc. Podem, de certa forma, ser mais estereotipicamente masculinos do que a maioria dos restantes homens!

No entanto, em ambos os casos, a opção é sempre reprimir os verdadeiros sentimentos.

De notar que existe aqui uma diferença entre a supressão ou repressão do desejo de se vestir (e de se comportar) como uma mulher e outras formas de actividades socialmente questionáveis. Já não falo em actividades ilícitas — requer uma mentalidade especial, presente em menos de 5% da população, para activamente procurar a actividade ilícita — e que naturalmente causará uma certa ansiedade (o medo de ser descoberto pelas autoridades). Aqui, pelo contrário, estamos a falar de uma actividade perfeitamente legítima (não só nada proibe que um homem se vista de mulher em público, como há mesmo leis que proibem a discriminação das pessoas pela roupa que vestem ou pelo género com que se identifiquem — trata-se de um caso em que do ponto de vista legal existe protecção à actividade e à inclusão do indivíduo na sociedade). No entanto, por ser socialmente (ainda) pouco aceitável, esta é reprimida.

Muitas vezes a repressão vem de muito cedo. Eu lembro-me com 7 ou 8 anos de tentar impedir que os meus pais me vestissem de sevilhana no Carnaval, porque tinha pânico que a minha satisfação por tal «disfarce» fosse de tal forma evidente no meu rosto, que os meus pais desconfiassem de alguma coisa. E, secretamente, claro está, invejava parentes e amigos próximos, mais ou menos da minha idade, cujos pais os disfarçavam de sevilhanas — alguns dos quais mostravam-se nas fotografias bastante contentes!

Fotografia do futuro presidente dos EUA, Franklin D. Roosevelt, em 1884
Fotografia do futuro presidente dos EUA, Franklin D. Roosevelt, em 1884
Em imensos casos, pois, a repressão começa logo muito cedo, na altura em que é suposto os pais dizerem aos meninos para brincarem como meninos, e às meninas para brincarem como meninas. Num estudo que li, isto acontecia mais ou menos por volta dos 6 anos, ou seja, a entrada para a escola. Esse estudo referia muitos casos em que as crossdressers, até aos seis anos, vestiam-se de meninas em casa, muitas vezes encorajadas por elementos da família do género feminino (mães, tias, avós), e que se deliciavam com a «brincadeira». Nalguns casos usavam o cabelo comprido, e nessas ocasiões as parentes femininas davam-lhe um jeito feminino ao cabelo e tudo. Isto pode-nos parecer um tanto estranho, mas é no fundo uma continuação de um hábito do séc. XIX, uma época em que era frequente as crianças de ambos os géneros vestirem vestidos (normalmente brancos por serem mais baratos de tingir e lavar), provavelmente por uma mera questão de ser muito mais prático mudar as fraldas a uma criança que está a usar um vestido.

Este hábito aparentemente persiste, ou persistiu, em certas famílias, embora não seja muito popular (a moda da roupa para crianças mudou drasticamente na passagem do séc. XIX para o séc. XX, altura em que os rapazes deixaram de usar vestidos). O certo é que nos casos onde esta prática é ainda comum nos dias que correm, por volta da idade escolar, o pai força a criança a cortar o cabelo e passa a vestir-se «de rapaz», coisa que pode ser traumático para a criança, numa altura em que já está formada uma grande parte da sua personalidade, e este comportamento pode parecer-lhe incompreensível.

De uma forma ou de outra, independentemente do contacto que a criança tenha com a roupa feminina e dos desejos que tenha de «ser uma menina», mais cedo ou mais tarde, por pressão educacional dos pais e pressão social do ambiente escolar, esses desejos e vontades serão, forçosamente, reprimidos. Isto talvez seja menos frequente nos dias que correm, em que começa a haver alguma sensibilidade para a questão da transexualidade, mas não será de todo uma circunstância habitual. Regra geral, a uma criança que lhe tenha sido atribuído o género masculino, espera-se que se vista e se comporte de acordo com esse género — à força de violência verbal, física, ou a ameaça de ambas, se a criança não se comportar de acordo com o padrão heteronormativo cisgénero.

Resta, pois, a supressão e repressão desses desejos e sentimentos.

Como referi anteriormente, nalguns casos, que são os mais evidentes casos de transexualidade dita «primária» (porque se manifesta primeiro; não porque seja mais importante que os outros tipos), o indivíduo rejeita a conformidade com o género que lhe atribuiram, e essa rejeição é violenta — no sentido de recusa, mesmo com a ameaça de violência verbal ou física. Isto normalmente conduz a estados depressivos causados pelo trauma constante de ter de viver num ambiente familiar e social que obriga o indivíduo a adoptar um género e um comportamento de género com o qual não se identifica minimamente. Estes casos são populares na comunicação social, e, por muito raros que sejam, tendem a despertar uma certa compaixão por parte da população.

Mas a maioria das crossdressers e transexuais não passam por esta fase tão óbvia. Em vez disso, suprimem e reprimem os seus sentimentos, e adoptam mecanismos de compensação para os esconder de todos — por vezes, escondendo-os de si próprio. Em certa medida, é como se desejassem fortemente não quererem ser diferentes, acreditando que é apenas «uma fase passageira» e que, se for «compensada» com comportamentos socialmente aceitáveis para o género que lhes foi atribuído, pode ser que deixem de sentir tão fortemente essa «necessidade» de se afirmarem de acordo com o género com que se identifiquem. Para muitos, por exemplo, a solução passa por criar uma família estável, ter filhos, e um emprego socialmente aceitável para um digno pai de família — acreditando assim que, rodeando-se de «normalidade», pode ser que desapareçam os «desejos incontroláveis».

Lembro-me também que no meu caso as primeiras vezes em que conscientemente vesti roupas do género feminino na minha fase adulta foi numa fase em que um namoro estava a correr mal (e efectivamente terminou dois anos depois), e na altura justificava este meu comportamento «aberrante» como uma compensação qualquer relacionada com instatisfação romântica. Quando conheci a minha actual mulher, tinha bastante receio de que se tornasse em mais um episódio passageiro que me deixasse devastada emocionalmente, pelo que não só procedi muito mais cautelosamente na elaboração de laços mais e mais íntimos, como até aumentei a prática de crossdressing — nessa altura muito mais difícil por ter menor liberdade de espaços onde o fazer. Mas quando a relação se tornou de facto estável e sólida, perdendo o receio de que fosse apenas uma mera «paixoneta de final de Verão», tentei tomar a decisão de nunca mais fazer crossdressing, «porque não precisava», já que tinha uma companheira. Este «porque não precisava» era uma tentativa de auto-delusão, procurando convencer-me a mim mesma de que a Sandra não era mais do que uma forma subtil de escapismo para lidar com frustrações românticas. Uma vez abandonando essa fase de frustração, com uma relação amorosa estável e duradoura, a Sandra «não seria mais necessária».

É claro que toda a gente neste meio sabe que as coisas não funcionam assim, mas eu nessa altura era muito ignorante àcerca dos mecanismos relacionados com o crossdressing e com as questões de identidade de género. Tentava convencer-me de que eram apenas fenómenos passageiros, construídos como forma de escapismo, mecanismos para lidar com certo tipo de frustrações, ou apenas para alívio de stress (e a ansiedade sexual/romântica é uma forma de stress). Auto-convencia-me de que uma pessoa «normal», ou seja, alguém que estivesse numa relação amorosa estável e duradoura não «precisava» desses mecanismos de escape.

Em vez disso, claro, continuava a reprimir os meus desejos e sentimentos, e a afastá-los o mais que podia dos meus pensamentos diários. Houve efectivamente um período de tempo, mais ou menos entre 2001 e 2004, em que o crossdressing praticamente não existiu — afundava-me em trabalho para me «preocupar com outras coisas». Infelizmente depois seguiram-se uma série de circunstâncias muito complicadas na minha vida que acabaram por fazer-me concluir que não poderia passar o resto da minha vida abandonando o crossdressing de vez — que isso seria impossível de todo — o que me forçou a revelar a minha verdadeira natureza à minha mulher, esperando que ela aceitasse a minha situação, o que efectivamente veio a acontecer.

Uma pequena divagação: o cérebro não é uma máquina…
Imagem fMRI do cérebro de FastFission (Wikimedia). Distribuído com uma licença Creative Commons Attribution-Share Alike 3.0 Unported.
Imagem fMRI do cérebro de FastFission (Wikimedia). Distribuído com uma licença Creative Commons Attribution-Share Alike 3.0 Unported.
Quem estuda budismo (ou filosofias semelhantes) sabe que um dos seus pilares assenta na constatação de que nada é permanente; se não fosse assim, por exemplo, não nos poderíamos curar de uma doença (é só porque a doença é impermanente que ela é curável). O budismo, obviamente, extrapola da impermanência dos fenómenos físicos — em constante mutação e deterioração, coisa que podemos observar claramente — para os fenómenos mentais. A constatação mais simples está no facto de não sermos hoje a mesma pessoa que éramos aos seis anos. Dizemos que sim, apontamos para a nossa fotografia quando éramos crianças, e dizemos, «isto sou eu». Mas é certo que não pensamos, nem raciocinamos, nem temos a experiência do que é ser uma criança de seis anos. Podemos ter a memória, mas não passa disso mesmo. As experiências acumuladas ao longo de toda uma vida, a educação que recebemos (e o que aprendemos por nós próprios), moldaram a nossa personalidade, e nada temos em comum com a tal criança que vemos na foto. Quanto muito, poderemos dizer que há um fio condutor, uma certa continuidade, que se originou algures quando um esperma do nosso pai perfurou um óvulo da nossa mãe, até à pessoa que somos hoje. Mas não somos «a mesma pessoa»: somos uma pessoa completamente diferente, fruto das experiências que tivémos, moldada por essas mesmas experiências, se bem que tenhamos a sensação de sermos a mesma pessoa, assegurada por memórias internas (recordamo-nos de episódios da infância) e externas (fotografias, roupas velhas, etc.).

Agarramo-nos, pois, a uma noção de que existe «algo» que, de certa forma, é sempre igual em nós, o nosso «verdadeiro eu». Os mais religiosos identificarão esse «verdadeiro eu» com uma alma, ou um espírito, ou uma substância qualquer mística que transmita essa sensação de continuidade aparente daquilo que está no nosso mais profundo ser. Os mais cépticos apenas dirão que tudo isso está no cérebro — aquilo que chamamos de «mente» é apenas um epifenómeno da complexidade do cérebro, e como temos o mesmo cérebro de quando nascemos, nada de mais natural que «sentimos» existir esta continuidade de existência.

Quando aprendi biologia humana, a ciência considerava nessa altura que nascíamos já com todos os neurónios necessários no cérebro. O que faltava era, pois, a interconexão destes: através da aprendizagem, da educação, dos jogos, etc. os neurónios tornavam-se mais e mais interconectados. De certa forma, o cérebro era visto como uma espécie de computador, que, à nascença, pouco mais tem do que o firmware — algumas conexões pré-estabelecidas durante o estágio embrional que nos permitiriam a sobrevivência nos primeiros tempos (como o reflexo de berrar quando se está com fome e de mamar o leite materno). O resto das conexões estabelecia-se como software — no sentido em que nos auto-programávamos à medida que teríamos novas experiências e que nos ensinassem mais e mais coisas.

Ao envelhecer, naturalmente, os neurónios iriam morrendo, o que explicava uma tendência para a demência à medida que as pessoas envelhecem. Dizia-se então que o facto de existirem imensas pessoas perfeitamente lúcidas e desfrutando plenamente das suas capacidades cognitivas até ao final das suas vidas tinha a ver com esta capacidade de continuar a estabelecer conexões entre os neurónios. Ou seja: apesar de estar a morrer parte do cérebro, compensávamos isso «exercitando» o cérebro, obrigando-o a fazer mais interconexões entre os neurónios que sobravam, de forma a que essas compensavam a perda definitiva de neurónios com a idade.

Este mecanismo também explicava como era possível recuperar de lesões graves do cérebro — no fundo, os neurónios que não tivessem sido afectados acabavam por aumentar o seu número de interconexões, compensando assim os neurónios desaparecidos devido a acidente, doença, tumor cerebral, AVC, etc.

Apesar deste modelo não estar muito errado, e ter um razoável poder explanatório (no sentido em que explica muitas coisas!), rapidamente se revelou como incompleto, e, em certo número de aspectos, mesmo errado. O problema é que assentava em dois «preconceitos»: o primeiro era a visão computacional do cérebro, ou seja, a noção de que o cérebro era uma espécie de computador biológico que podia ser programado e programável. Este tipo de noções foi frequente ao longo de toda a história da ciência e reflecte o avanço tecnológico da época. No século XVII, mais ou menos, o cérebro era visto como se fosse um sistema hidráulico de válvulas e canalizações, porque esse tipo de sofisticação tecnológica estava muito em voga em elementos arquitectónicos (basta pensar nas fontes deslumbrantes do barroco), e porque o mesmo modelo do sistema hidráulico tinha funcionado para «desvendar» o sistema cardiovascular. Mais tarde, com o aparecimento de relógios cada vez mais sofisticados, ao ponto de poderem ser colocados nos bolsos, o cérebro foi visto como um relógio de infinita complexidade. Mais tarde ainda, já no século XIX, quando surgem as primeiras redes de comunicação com o telégrafo, o cérebro foi equiparado a uma vasta rede de telégrafo — sabendo-se perfeitamente na altura que os sinais nervosos passados entre neurónios são activados electricamente — em que no fundo o cérebro recebia sinais de todos os nervos, contendo informação codificada, de alguma forma, em impulsos eléctricos. Esta imagem de funcionamento do cérebro claramente se aproxima muito mais da realidade — pois hoje em dia já é possível criar implantes nos nervos usando um microchip para transmitir impulsos eléctricos, que permitem restaurar a audição ou até mesmo, em certos casos, o movimento de partes do corpo, quando os respectivos nervos tenham sido danificados ou cortados.

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