Por Meredith Talusan

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Se não fosse pela internet, eu talvez nunca tomasse consciência que sou uma pessoa trans. E mesmo que por fim eu descobrisse, eu provavelmente não saberia quase nada sobre como transicionar. Sem a neutralidade da rede, nem haveria internet em primeiro lugar. E sem o coletivo de pessoas trans como eu que a utilizou para se descobrir, para se organizar e para lutar pelos seus direito — quase sempre se conectando e reunindo de forma online — o movimento pelos direitos trans não existiria da forma como é atualmente. Seria mais fraco, menos sustentável e menos povoado por uma diversidade de vozes. É possível, e até provável, que sem a neutralidade da rede, o presente movimento trans na América sequer existiria.

Para pessoas trans e suas pessoas queridas que passaram pela transição de gênero na atual conjuntura de uma maior conscientização sobre a transgenereidade, é difícil imaginar como seria encontrar informações online nos anos 2000, quando comecei a me questionar sobre minhas próprias insatisfações com meu gênero. Naquela época não existia redes sociais, nem grupos no Facebook, nem mesmo Myspace ou Friendster. Sentada no meu quarto enquanto eu achava que era um homem gay, uma pesquisa no Altavista me levou à um site e sala de bate-papo chamado TGForum.

Eu não conhecia pessoalmente nenhuma mulher trans antes do TGForum. Eu havia lido artigos e visto entrevistas, então eu conhecia mulheres como Caroline Cossey, Christine Jorgensen, e Renée Richards, todas elas descrevendo como se sentiram crianças desde a infância e como este sentimento às torturou por grande parte de suas vidas.

Mas eu nunca vivenciei este sentido de destinação à frustração, nem acordei de pesadelos em que eu tinha um corpo masculino e estava no maior pesadelo que era de fato ter um corpo masculino. Eu estava ok, apenas insatisfeita de uma forma que eu não conseguia nomear — como um broto no escuro, sem saber que havia luz ou que existiam, inclusive, flores.

Quando eu falei com mulheres que, de fato, eram trans no TGForum, eu aprendi que várias delas não pensavam ou se sentiam da forma como eu acreditava que elas deveriam se sentir. Havia aquelas que viviam por anos como mulher mas não queriam realizar a cirurgia de redesignação, aquelas que se relacionavam com outras mulheres trans, aquelas que viveram o resto de suas vidas pós-transição sem que ninguém soubesse, inclusive seus próprios maridos. E mesmo que eu não fosse como muitas, o fato de existirem tantas delas significava que talvez eu pudesse existir também.

Foi uma mulher trans “não-operada” que se identificava como Stacy que me avisou via chat que, independente de como eu me sentia sobre eu mesma ou minha identidade, eu teria que contar uma história “aprovável” para conseguir acesso médico aos hormônios, bloqueadores de testosterona ou qualquer tipo de cirurgia. Ser transgênero, como outrora fora ser gay, continuava definido como um transtorno mental pela Associação Americana de Psiquiatria nos anos 2000. Assim, nós não conseguíamos os medicamentos que precisávamos ao menos que concordássemos que tínhamos uma doença que precisava ser curada e que nosso único desejo era se parecer e agir como uma mulher “normal” — não como Stacy, que embora tenha colocado próteses de seio, não tinha a menor intenção de remover seu pênis.

Foi uma menina chamada Gwen, bonita, com seus cabelos castanhos-avermelhados e rosto oval na foto de perfil, que me deu conselhos sobre como ser mais feminina na minha entrevista com o terapeuta e me encorajou ao dizer que eu era bonita o suficiente e tinha passabilidade como ela — cujo namorado não sabia que era trans. Ela me ensinou a parecer e agir como uma GG — era assim que mulheres cis eram chamadas naquela época, garotas genéticas — e entrar no consultório do terapeuta com a maior passabilidade possível, já que essa seria a única forma que ele poderia me escrever uma carta de aprovação, minha passagem para sair dessa jaula não-hormonizada.

Uma outra mulher, cujo nome eu não mais lebro, me falou sobre esse DMV (o equivalente ao Detran) no subúrbio de Massachusets — 45 minutos de Boston, aonde eu vivia — que garantia a mudança de gênero nas identificações civis sem a necessidade da cirurgia de redesignação sexual. Uma outra ainda me indicou o Transsexual Roadmap, que foi como eu iniciei meu caminho pela transição, desde coletando informações para o meu terapeuta até escolher o cirurgião thailandês que fez minha cirurgia de redesignação. Foi graças à essas mulheres online e ao caminho que elas pavimentaram que eu consegui sair de uma caverna que eu nem sabia que habitava, e isso mesmo sem conhecer nenhuma delas pessoalmente.

Mas o TGForum, o Transsexual Roadmap e outras fontes de conteúdo de valor incalculável para pessoas trans, nunca teriam existido em um mundo sem neutralidade de rede — ou então, se tivessem existido, somente seriam disponibilizados para aqueles que pudessem pagar mensalmente suas taxas ao provedores de internet que escolhessem apoiá-los, isso se tivessem sorte.

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Para imaginar um mundo sem neutralidade de rede, é útil se relembrar dos primórdios da internet. Ao tempo que eu criei uma conta na AOL, mais ou menos em 1998, a internet existia, mas era caótica e desordenada — o que fazia com que muitos preferissem os elegantes e privativos “jardins murados” de serviços como a AOL, que apresentava rica interatividade e um complexo design em um tempo em que as páginas neutras na internet só eram capazes de reproduzir textos retos e imagens de baixa-qualidade. As capacidades da internet estavam aumentando gradualmente, mas seu principal benefício era a liberdade: qualquer um poderia construir sua webpage, enquanto na área AOL havia um rígido controle sobre quem era permitido a interagir em seu serviço.

A AOL provavelmente não gostou do rápido crescimento da internet — mas se eles não dessem aos seus usuários acesso à isso, você sempre poderia trocar para um serviço competidor que daria. Qual fosse o provedor de serviço que você utilizasse, você se conectaria a ele por um modem, fazendo uso de uma linha telefônica — e a companhia telefônica não se importava com qual serviço você estivesse utilizando. De fato, a lei dizia que eles não tinham permissão de se importar. E então, a competição entre as prestadoras do serviço permitiu que a nascente internet florescesse, embora com um conteúdo subversivo que muitos prefeririam ocultar.

Mas nos dias de hoje, essas linhas em nossas casas são de propriedades de ISPs — fornecedores autônomos de acesso à internet — não um provedor neutro como a companhia telefônica. E na última semana, a FCC (Comissão Federal de Comunicações, o equivalente à Anatel) se pronunciou afirmando que esses ISPs não estão presos aos padrões de neutralidade de rede das companhias telefônicas. A maioria dos americanos faz uso de apenas um ISP, então, se o seu decide não garantir o acesso à um serviço — isso porque seria competitivo com um serviço que eles oferecem ou porque eles consideram que violaria a ética da empresa — não há muito que você possa fazer sobre isso.

Em um tempo em que ser transgênero era considerado uma doença mental não apenas no meio médico, mas também pela sociedade em geral, o que os provedores de serviço teriam feito com as páginas que questionam esse establishment? Ou com discussões que encorajavam pessoas a tomar atitudes não apenas consideradas irresponsáveis, mas potencialmente ilegais, para que pessoas trans como eu recebessem tratamento médico e reconhecimento legal?

Eu consegui ter acesso aos hormônios sem um “teste da vida real”, um período de espera de ao menos um ano que pessoas trans são tipicamente forçadas a passar antes de começar a transição médica. Como eu obtive o RG e podia, então, me identificar sem o risco do constrangimento e assédio antes da cirurgia, um requerimento legal no meu estado, Massachusetts. Eu consegui cobertura do seguro para meus hormônios e bloqueadores de testosterona graças ao meu médico “trans-confirmador”, apenas porque ele me classificou como tendo uma condição endócrina, já que a cobertura fora negada quando ele especificou que eu era uma pessoa trans. Eu soube como encontrar essas pessoas que fariam esses procedimentos não-sancionados e potencialmente ilegais para mim, e sabia como persuadi-los a fazer essas coisas, graças às informações que eu encontrei na internet, que talvez sequer tivesse existido ou existiria hoje sem a neutralidade de rede.

Devido ao ambiente que envolvia a questão trans nos anos 2000, eu desconfio fortemente que as corporações que poderiam ter o total controle da internet não permitiriam que essas informações circulassem em seus jardins murados. E sem essas informações, eu nunca teria os recursos para transicionar, nem teriam muitas outras em minha posição, que, conforme crescíamos em número fomos capazes de nos unir como um movimento, sustentado pela internet, tornando possível que nós nos tornássemos modelos para outras que não se reconheciam como trans até que interagiam conosco. É claro que, se a internet não existisse, eu — eventualmente — poderia ter me reconhecido em outra pessoa trans e transicionado. Mas como também é possível que eu nunca tivesse conhecido tal pessoa, e não me consideraria trans hoje, ainda que este entendimento sobre meu gênero tenha se tornado uma parte fundamental da minha identidade assim que eu consegui nomeá-la.

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Para além da ganância corporativa, eu não ficaria surpresa se esse desejo de prevenir que pessoas como eu tenham consciência de quem são seja um fator de motivação para que a decisão da FCC de acabar com a neutralidade de rede. Há muitas pessoas na América, especialmente aquelas simpáticas ao presente governo, que prefeririam que pessoas como eu não existissem: pessoas que cresceram para entender a si mesmas fora das normas sociais que nos foram impostas. Já que é tão custoso à nós se revelar em público, foi a internet livre que nos permitiu congregar e organizar, dividir informações livremente e nos apoiar em tempos difíceis. Por sua vez, nossa existência crescente nos levou à uma proliferação do reconhecimento que nossas vidas devem ser protegidas, que nossos espaço dentro do movimento pelos direitos LGBTQ+ deve permanecer seguro.

Eu não estaria aqui sem meus amigos online e os recursos que achei na internet livre, que permitiram que eu me descobrisse e me deram a coragem de agir após essa descoberta. Se as contestações à decisão da FCC falharem, eu só terei uma opção de provedor de internet onde eu moro atualmente e caso esse provedor escolha censurar conteúdo queer ou qualquer coisa que considere questionável, eu não teria muito o que fazer. Isso pode parecer exagerado até que relembremos que a administração Trump baniu o termo “transgênero” e seis outras palavras dos documentos dos Centros de Saúde Pública, bem como de outras agências, como o Departamento de Estado. Em um país onde o próprio governo ensossa uma censura autoritária, a possibilidade que as corporações possam utilizar esse poder para censurar ideias que questionam não parece tão remota.

Enquanto eu e outras pessoas queer continuamos a crescer em nossas identidades e vidas, eu me pergunto como um mundo sem neutralidade de rede irá afetar novas gerações de companheiros queer e de outros grupos marginalizados. Graças à internet livre, conseguimos entender melhor a nós e a nossas motivações, a forma como nós queremos conduzir nossas vidas sexuais e românticas, a relação de nossa mente com o que a sociedade considera normal e as intercessões entre nossas identidades e orientações.

Este processo continua, para mim e para tantos outros, ainda que a ameaça do governo — de apagar a luz da informação que a neutralidade de rede irradia — signifique que muitos de nós possamos perder essa luz, em formas que são impossíveis de prever. Embora seja claro para mim que sem a neutralidade de rede, certamente continuaremos tendo pessoas queer — cuja identidade nós talvez sequer consigamos reconhecer como queer hoje — que nunca encontrarão a luz que precisam para florescer. Mas eu não vou lamentar por aqueles que poderão passar a vida sem receber as informações da internet livre. Ao contrário, eu decido lutar, como espero que uma larga parte das pessoas LGBTQ+ também façam, para que a neutralidade de rede continue sendo uma fonte de conhecimento e liberdade não apenas para pessoas trans ou queer, mas para cada uma das pessoas da América, especialmente para aquelas que ainda não descobriram quem são.

Meredith Talusan é Editora Senior na them. e uma premiada jornalista e autora. Escreveu reportagens, artigos e comentários para muitos veículos como The Guardian, The Atlantic, VICE, Matter, Backchannel, The Nation, Mic, BuzzFeed News, e The American Prospect.Recebeu em 2017 o GLAAD Media and Deadline Awards, e contribuiu para diversos livros, como Nasty Women: Feminism, Resistance, and Revolution in Trump’s America.