No início do século XX, a máquina eléctrica mais sofisticada era talvez a central telefónica automática, que permitia as telecomunicações globais sem a necessidade de operadores a mexerem cavilhas de um lado para o outro; não é de surpreender, pois, que na altura se equiparasse o cérebro a uma central telefónica automática, em que a analogia com o modelo anterior se mantinha: o sistema nervoso central era uma espécie de rede telefónica, enviando impulsos eléctricos aos nervos motrizes, recebendo impulsos dos sentidos, e processando tudo a nível do cérebro, de forma automática. Esta visão tinha também a particularidade de considerar que a máquina funcionava automaticamente sem necessidade de explicações «místicas», ou seja, é já nesta altura que se postula claramente — com a ajuda de analogias tecnológicas — que aquilo a que chamamos «mente» só pode ser um epifenómeno de uma máquina infinitamente complexa.

A partir dos meados do séc. XX, claro, desenvolvemos algo de ainda mais complexo e maravilhoso: o computador. Este não só partilha das características dos modelos da central telefónica automática, e da rede de telégrafos, como acrescenta mais uma: a capacidade de programação. O inverso também se deu: já nos anos 1960 se conseguiam demonstrar teoremas matemáticos com o recurso a computadores, e cedo surgiram mesmo modelos informáticos que podiam provar qualquer teorema. Ou seja: a ciência da computação mostrou que podemos claramente «simular» comportamentos que achávamos que eram exclusivamente do foro humano. Daí até concluir que o cérebro era no fundo um computador de complexidade incrível foi um pequeno passo. E foi mais ou menos isso que aprendi na escola.

Comum a todos estes modelos está também o tal preconceito, o de que esta máquina a que chamamos cérebro nasce, de alguma forma, «completa», com todas as partes, e que só é «modificada» através da «programação» das interconexões entre neurónios. Afinal de contas, quando nascemos, temos já os nervos motrizes e sensoriais todos no sítio certo — tal como numa rede de telecomunicações. O cérebro terá, pois, forçosamente, de estar igualmente «completo, mas programável», e isso logo de nascença.

O segundo «preconceito» é mais subtil, mas a verdade é que estes modelos do cérebro surgiram em sociedades influenciadas de uma certa forma pelas religiões do livro (judaísmo, cristianismo, islão), em que existe uma visão antropocêntrica do universo, e em que o homo sapiens tem o papel principal, distinto de todas as restantes espécies. Só com Charles Darwin é que esta visão é abandonada graças à exposição da teoria da evolução das espécies — mas ainda hoje em dia muita gente pensa coisas absurdas (e que eram absurdas já para Darwin) que os animais só têm instinto, enquanto os humanos têm inteligência (mas podem ter alguns comportamentos instintivos). Há mais de 150 anos que se sabe que não é assim, mas, no entanto, ainda nos meus tempos de liceu ouvia estas barbaridades da boca dos meus professores — e eu estudava num liceu perfeitamente laico!

Com os avanços das ciências neurológicas, todo este modelo começou a ser colocado em questão quando se estudou melhor o efeito do sistema endócrino (ou hormonal). Já se sabia há muito tempo que as hormonas tinham efeito em imensas partes do corpo, incluindo o cérebro, mas os avanços da ciência permitiram entender que o cérebro, na realidade, não tem apenas um mecanismo de transmissão de informação — o sistema nervoso central — como se pensava. Tem dois: um sistema eléctrico, que é mais rápido, e que é realmente o sistema nervoso central. Mas o segundo é um sistema químico, que é o sistema endócrino. Surpreendentemente, não é tão lento como se possa pensar: as mensagens transmitidas sob a forma do que vulgarmente chamamos de hormonas podem, por vezes, levar apenas um segundo (uma batida de coração!) a transmitir informação.

No entanto, o sistema hormonal tem um efeito brutal no cérebro: é que não transmite apenas informação. Em vez disso, altera a forma de funcionamento do cérebro.

Ora este ponto é difícil de explicar, porque não temos nenhuma analogia no mundo da tecnologia. Talvez a forma mais simples de compreender é que o sistema endócrino funciona como se estivéssemos a andar de automóvel, carregássemos num botão, e, um segundo mais tarde, estávamos a andar de bicicleta. Carregando noutro botão, a bicicleta transforma-se de novo num automóvel. Ambos os veículos permitem a deslocação do condutor. Mas conduzem-se de forma completamente diferente, e a velocidades também diferentes. E, naturalmente, há sítios onde uma bicicleta poder ir que um automóvel não pode (por exemplo, um beco muito estreito), e, de forma inversa, há sítios onde se chega facilmente com um automóvel que são difíceis ou inacessíveis a uma bicicleta.

No entanto, a analogia mais frequente ainda parte do modelo antigo do cérebro como computador. A única diferença é que se trata de um computador que se modifica a si mesmo. Não é apenas a programação que muda; é o próprio hardware! Assim, determinadas mensagens do sistema hormonal equivalem a mudar o CPU, acrescentar um disco rígido ou uma placa gráfica nova, e no fundo ficar com um sistema diferente. Eu pessoalmente gosto mais da outra analogia, porque quando falamos de computadores, fica-se sempre com a ideia que, no fundo, no fundo, qualquer computador é programável, mais ou menos da mesma forma, seja um smartphone no bolso, seja um supercomputador na NASA (o que não é inteiramente verdade, mas é quase). Enquanto que andar de bicicleta ou de automóvel são experiências completamente diferentes. Um bom condutor de automóvel pode não ser um bom ciclista, e vice-versa. Para andarmos bem de bicicleta temos de estar em forma, mas para conduzirmos um automóvel, não é preciso.

Vejamos alguns exemplos de como isto funciona. Uma hormona muito conhecida é a adrenalina. Esta é lançada no sistema sanguíneo quando há uma ameaça de perigo, e afecta os músculos, dando-nos mais energia. Mas também reconfigura o funcionamento do cérebro: passamos a estar mais alertas, conseguimos reagir mais depressa, temos uma visão mais precisa. Também cometemos mais erros de julgamento: o cérebro toma decisões mais depressa com informação parcial. Muitas vezes isso significa errar — pois tomar a decisão correcta pode levar demasiado tempo — e mais tarde podemo-nos perguntar a nós próprios «porque é que eu fiz isto?». Imaginem o caso clássico de estar a conduzir à chuva, vemos subitamente um carro a aproximar-se de lado a alta velocidade, e travamos desesperadamente — entrando em aquaplaning e chocando com o outro carro. Depois, a posteriori, notamos que se calhar a reacção mais óbvia deveria ter sido acelerar para evitar o outro carro, e não travar com o piso molhado. Mas, no momento, essa foi a primeira reacção que tivémos — sob o efeito de uma rápida descarga de adrenalina.

Outro exemplo clássico é o do efeito do álcool no cérebro (ou de qualquer outra droga): enquanto esta actua, sentimo-nos diferentes, e não falo apenas de estarmos tontos e perdermos o equilíbrio. Pode haver mesmo desinibição, a perda de características da nossa personalidade (como a timidez ou o medo). Se conduzirmos, as nossas reacções são mais lentas e temos visão em túnel, mas temos uma falsa confiança de que somos os melhores condutores do mundo — e não temos consciência de como as nossas percepções estão alteradas. Ora toda a gente conhece este tipo de efeitos. O que talvez não nos tenha passado pela cabeça é que o álcool e as outras drogas efectivamente alteram o funcionamento do cérebro. É literalmente como se tivéssemos feito um transplante de cérebro, pois tudo realmente funciona de forma diferente. Felizmente, tal como na adrenalina, o efeito das drogas também desaparece ao fim de algum tempo, e o cérebro retoma o seu funcionamento habitual.

Esta espectacular capacidade do cérebro — também conhecida como plasticidade — tem sido só recentemente investigada e aceite como tal. Foram muitas décadas de preconceitos para aceitar justamente que o cérebro não é nada de «fixo», não é uma máquina programável e previsível, mas sim algo de completamente diferente. Tanto é assim que, ao contrário do que se passa com os computadores, somos capazes de lidar com paradoxos — conceitos que são simultaneamente verdadeiros e falsos (apesar de tal coisa ser lógica e matematicamente impossível). Um caso clássico: «Tudo o que eu digo é mentira». Ora se tudo o que digo é mentira, também esta frase é uma mentira. Assim terão de haver algumas coisas que digo que são verdadeiras. Ou, de entre todas as mentiras que digo, só esta frase é que é verdadeira — e todas as restantes são falsas? Como podem ver, não há forma de analisar esta expressão do ponto de vista lógico — e, como tal, a compreensão desta frase não é computável — mas não temos qualquer problema em dizer este tipo de coisas e a raciocinar sobre elas.

Um caso particularmente curioso ocorre frequentemente com o meu pai, que sofre de demência vascular. Ele é capaz de dizer frases em que afirma uma coisa e o seu preciso oposto, sem reparar que o está a fazer. Para ele, ambas as afirmações são verdadeiras, e nem sequer percebe onde está a contradição. Mesmo que calmamente se lhe explique que ele não pode afirmar uma coisa e o seu oposto em simultâneo, e o ajudemos a raciocinar, passo a passo, para ele ver onde está a contradição lógica, ele já não é capaz de chegar a essa conclusão. Ou seja: o facto de sermos capazes de pensar de forma irracional e ilógica mostra como o nosso cérebro não é, de facto, uma máquina computacional. Na prática — e isto não se sabe ainda muito bem como funciona — o que deve acontecer é que são grupos de neurónios diferentes que estão a processar a mesma informação, mas de forma distinta, chegando a resultados contraditórios. Mas ambos os resultados são «igualmente válidos» — quando nos apercebemos disto, ao nosso nível cognitivo mais elevado, o que temos é indicação dos níveis inferiores que se chegaram a duas conclusões opostas, ambas com a mesma «força». Não temos qualquer problema com isso; lidamos bem com os paradoxos, mesmo que os saibamos reconhecer como tal (ao contrário do meu pai, que já não o consegue fazer).

Ora todo este longo capítulo sobre a forma como funciona o nosso cérebro — uma área que sempre me fascinou! — tem apenas um único propósito: explicar que o cérebro não é uma máquina computacional, mesmo que esse modelo do cérebro continue a ser muito popular, mas é, isso sim, um sistema de processamento de informação (de forma não-computacional) que se altera a si próprio. Não meramente ao nível do «software» (o que poderia ser explicado por novas e diferentes interligações entre neurónios) mas mesmo a nível do «hardware» (o tempo de propagação de informação pelo sistema nervoso central altera-se; certas conexões deixam de ser usadas; áreas do cérebro apropriadas para determinado processamento de informação passam a processar coisas completamente diferentes; etc.).

O que se sabe hoje em dia é que, pelo menos em certos tipos de depressão, o que acontece é que há uma «avaria» no cérebro. Em seres humanos saudáveis, existe uma substância neurotransmissora, a serotonina, que é responsável por uma série de funções a nível gastro-intestinal, mas também está na origem dos mecanismos que regulam o humor. De uma forma simplista — até porque não sei explicar mais do que isto! — quando realizamos acções que sejam positivas para o nosso bem-estar (físico ou mental), o cérebro é «inundado» de serotonina. Por exemplo, comer leva à libertação de serotonina, e isso produz-nos bem-estar. Porquê? Porque temos de nos alimentar para sobreviver. Assim, a serotonina é uma espécie de mecanismo que nos diz o que é que nos faz sentir bem, despoletando depois, ao nível das capacidades cognitivas superiores, uma sensação de agrado, de prazer, de bem-estar.

Há muitas coisas que activam a libertação de serotonina no cérebro. A mais conhecida (e que por isso é sempre tão entusiasticamente defendida pela classe médica!) é o desporto e a actividade física. Mas também comer chocolate liberta serotonina. Assim como fazer coisas agradáveis — ler um livro, ver TV, jogar no computador. Regra geral, a maior parte das actividades que consideramos «agradáveis» estão ligadas à serotonina — até coisas como dormir ou ter sexo. Fumar, ou ingerir nicotina de outra forma, também liberta imensa serotonina — daí o acto de fumar ser tão viciante: é o próprio cérebro que é quimicamente alterado pela nicotina (outra substância neurotransmissora) para ter níveis mais elevados de serotonina. Sei que sou suspeita por dizer estas coisas, mas a esmagadora maioria dos fumadores (atenção que há sempre excepções!) são pessoas mais calmas, mais equilibradas, com um humor mais constante (pouco dados a grande alterações de humor), menos irritáveis, menos ansiosas — desde que possam fumar à vontade, claro está. Isto é porque estão artificialmente a aumentar os seus níveis de serotonina e a manter o cérebro num modo de funcionamento de níveis mais elevados de satisfação. Claro está que logo que os níveis de nicotina diminuem no organismo (a nicotina é completamente eliminada ao final de 8 horas), também diminuem os níveis de serotonina, e isto é o que leva os fumadores a serem completamente viciados e a terem muita dificuldade em parar de fumar: porque isso significa sentirem não só a falta da droga, como se tornarem em pessoas ansiosas, irritadas, frustradas, cheias de medos, ansiedades e problemas… quando não têm nada disso enquanto fumam.

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