Excelente artigo, apesar de não estar relacionado diretamente ao crossdressing, sobre como se formam os fetiches do ponto de vista psiquiátrico/psicológico. Faz deixar claro a relação da infância (e em muitas quando começaram a se montar) com o que experimentamos na vida adulta.
Vale lembrar que, até meados de 2020 se não me engano, o crossdressing (distúrbio de se travestir) era considerado doença mental. Ainda bem que isso passou!
Segue o artigo, originalmente postado no UOL:
De onde vem o fetiche? Ele surge mesmo na infância? Especialistas explicam
Enquanto muitos pensam em "Cinquenta Tons de Cinza", outros lembram da série "Mindhunter" ou até mesmo de "O Sétimo Guardião". Seja qual for a sua referência, o fetiche já se tornou uma prática conhecida, apesar de ainda ficar no grupo das "esquisitices" sexuais.
Mas apesar de essa adoração de objetos ou partes do corpo ser cada vez mais vista em novelas, filmes e séries, pouco se fala sobre sua origem —muito provavelmente porque, segundo teoria de Sigmund Freud, ela estaria na infância.
O fetiche segundo Freud
No texto "Fetichismo", o psiquiatra interpreta a peculiaridade de certos objetos/partes do corpo escolhidos para serem fetichizados como substitutos fálicos, a fim de reprimir e negar a descoberta de que a mãe não tem um pênis (o que ele chama de "castração da mãe") e o próprio medo do homem de ser castrado.
"Neste caso, a escolha do objeto, portanto, não depende de sua semelhança ao pênis e sim de qual foi a primeira coisa que esse garoto viu quando descobriu que sua mãe não tinha um pênis", explica Luciana Saddi, membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise e mestre em psicologia clínica pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo). É por isso que geralmente o fetiche envolve partes do corpo ou vestuário da mãe.
A teoria de Freud é muito focada nos homens, e realmente os fetiches são mais comuns a eles do que às mulheres. Mas isso não quer dizer que elas não os possuam, só que isso é muito mais reprimido. "A mulher já tem dificuldade para encarar o sexo com menos tabu, imagine para criar uma 'perversão'", reflete a psicanalista.
Com base na teoria de Freud, a adoração por tal objeto persiste até a fase adulta, quando o menino começa a se relacionar sexualmente. É nesse momento que a presença de um sapato ou de uma calcinha durante o ato sexual garante a ele que vai dar tudo certo.
Lembrança de uma situação
O surgimento do objeto adorado não é só tema da teoria de Freud e outras hipóteses circundam a origem do fetiche. Por exemplo, o ser humano tem a capacidade de fantasiar situações eróticas sem nenhum tipo de restrição, o que facilita algumas associações.
Segundo Oswaldo M. Rodrigues Jr., psicólogo e diretor do InPaSex (Instituto Paulista de Sexualidade), tudo o que gostamos ou não depende das experiências da vida de como reagimos a determinadas situações. "Assim, elementos diferentes podem se associar a nossas reações corporais de prazer com a repetição de alguma situação. Dessa forma passamos a gostar ou desgostar de alguma coisa —esta coisa será o fetiche", diz ele.
Esse objeto que representa ou produz a estimulação sexual podem envolver sapatos, peças de roupa (geralmente femininas), ou partes do corpo (pés, nádegas, mamas, mechas de cabelo), mas o termo também pode ser aplicado a mecanismos, processos ou formas de obtenção de prazer que não são um objeto único.
O filósofo Karl Marx, por exemplo, também escreveu sobre o assunto, mas voltado, claro, ao mercado. De acordo com ele, de um modo geral, todos os objetos pelos quais podemos ter algum tipo de posse são um tipo de fetiche. Se você tiver o sapato ou a bolsa da moda, os objetos de desejo, sentirá uma espécie de poder. Daí a vontade de comprar sempre.
De distúrbio mental à novela das 21h
Nem sempre o fetiche foi encarado como uma perversão "saudável" e, até certo ponto, "aceitável" —quem nunca encontrou um amante de pés por aí que atire a primeira pedra. "No final do século 19, com a criação da psiquiatria como ramo da medicina, os comportamentos sexuais sem finalidade reprodutiva foram considerados doenças mentais", diz Rodrigues Jr.
Ao longo do século 20, entretanto, a discussão técnica levou à compreensão de que o comportamento sexual diferente, em si, não é uma doença mental e não necessariamente representa uma. "Iniciamos o século 21 separando o que se chama de comportamento parafílico de transtornos que se associam a expressões sexuais diferentes. Mas o sexo, o comportamento sexual, a sexualidade não é a causa desses transtornos", explica o psicólogo.
Segundo Saddi, a ideia de que o fetiche seria uma doença não faz sentido, principalmente com base na teoria freudiana, na qual ele existe para acabar com uma angústia. Tanto que o fetichista busca ajuda quando, por algum motivo, o momento do fetiche não deu certo, ou seja, e ele se sentiu angustiado. "Já me contaram de uma pessoa que tinha fetiche por correntes e, ao encontrar uma moça que topou usar, ela acabou se machucando. Ao ver o pé sangrando, o fetichista foi procurar o analista".
De acordo com Verena Meloni, especialista em Psicoterapia com Enfoque na Sexualidade pelo InPaSex e membro da SBRASH (Sociedade Brasileira de Estudos em Sexualidade Humana), o fetiche pode ser problemático quando ele deixa de ser uma fantasia ou preferência sexual e passa a ser a única forma da pessoa sentir prazer. "Nesse ultimo caso, é possível que ela tenha dificuldade para manter um relacionamento afetivo-sexual de longo prazo com outra pessoa que não apresente essa característica", diz ela.
Além disso, o fetiche passa a ser perigoso a partir do momento que coloca em risco a integridade física ou emocional de outra pessoa ou de si mesmo. Enquanto a atividade sexual for realizada com consentimento e entre adultos, pode ser uma grande fonte de prazer.
Fontes: Oswaldo M. Rodrigues Jr., psicólogo e diretor do InPaSex (Instituto Paulista de Sexualidade); Luciana Saddi, membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise e mestre em psicologia clínica pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo); Janaína Sampaio, psicóloga e psicoterapeuta sexual da SBRASH (Sociedade Brasileira de Estudos em Sexualidade Humana); Verena Meloni, especialista em Psicoterapia com Enfoque na Sexualidade pelo InPaSex e membro da SBRASH (Sociedade Brasileira de Estudos em Sexualidade Humana).
Vale lembrar que, até meados de 2020 se não me engano, o crossdressing (distúrbio de se travestir) era considerado doença mental. Ainda bem que isso passou!
Segue o artigo, originalmente postado no UOL:
De onde vem o fetiche? Ele surge mesmo na infância? Especialistas explicam
Enquanto muitos pensam em "Cinquenta Tons de Cinza", outros lembram da série "Mindhunter" ou até mesmo de "O Sétimo Guardião". Seja qual for a sua referência, o fetiche já se tornou uma prática conhecida, apesar de ainda ficar no grupo das "esquisitices" sexuais.
Mas apesar de essa adoração de objetos ou partes do corpo ser cada vez mais vista em novelas, filmes e séries, pouco se fala sobre sua origem —muito provavelmente porque, segundo teoria de Sigmund Freud, ela estaria na infância.
O fetiche segundo Freud
No texto "Fetichismo", o psiquiatra interpreta a peculiaridade de certos objetos/partes do corpo escolhidos para serem fetichizados como substitutos fálicos, a fim de reprimir e negar a descoberta de que a mãe não tem um pênis (o que ele chama de "castração da mãe") e o próprio medo do homem de ser castrado.
"Neste caso, a escolha do objeto, portanto, não depende de sua semelhança ao pênis e sim de qual foi a primeira coisa que esse garoto viu quando descobriu que sua mãe não tinha um pênis", explica Luciana Saddi, membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise e mestre em psicologia clínica pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo). É por isso que geralmente o fetiche envolve partes do corpo ou vestuário da mãe.
A teoria de Freud é muito focada nos homens, e realmente os fetiches são mais comuns a eles do que às mulheres. Mas isso não quer dizer que elas não os possuam, só que isso é muito mais reprimido. "A mulher já tem dificuldade para encarar o sexo com menos tabu, imagine para criar uma 'perversão'", reflete a psicanalista.
Com base na teoria de Freud, a adoração por tal objeto persiste até a fase adulta, quando o menino começa a se relacionar sexualmente. É nesse momento que a presença de um sapato ou de uma calcinha durante o ato sexual garante a ele que vai dar tudo certo.
Lembrança de uma situação
O surgimento do objeto adorado não é só tema da teoria de Freud e outras hipóteses circundam a origem do fetiche. Por exemplo, o ser humano tem a capacidade de fantasiar situações eróticas sem nenhum tipo de restrição, o que facilita algumas associações.
Segundo Oswaldo M. Rodrigues Jr., psicólogo e diretor do InPaSex (Instituto Paulista de Sexualidade), tudo o que gostamos ou não depende das experiências da vida de como reagimos a determinadas situações. "Assim, elementos diferentes podem se associar a nossas reações corporais de prazer com a repetição de alguma situação. Dessa forma passamos a gostar ou desgostar de alguma coisa —esta coisa será o fetiche", diz ele.
Esse objeto que representa ou produz a estimulação sexual podem envolver sapatos, peças de roupa (geralmente femininas), ou partes do corpo (pés, nádegas, mamas, mechas de cabelo), mas o termo também pode ser aplicado a mecanismos, processos ou formas de obtenção de prazer que não são um objeto único.
O filósofo Karl Marx, por exemplo, também escreveu sobre o assunto, mas voltado, claro, ao mercado. De acordo com ele, de um modo geral, todos os objetos pelos quais podemos ter algum tipo de posse são um tipo de fetiche. Se você tiver o sapato ou a bolsa da moda, os objetos de desejo, sentirá uma espécie de poder. Daí a vontade de comprar sempre.
De distúrbio mental à novela das 21h
Nem sempre o fetiche foi encarado como uma perversão "saudável" e, até certo ponto, "aceitável" —quem nunca encontrou um amante de pés por aí que atire a primeira pedra. "No final do século 19, com a criação da psiquiatria como ramo da medicina, os comportamentos sexuais sem finalidade reprodutiva foram considerados doenças mentais", diz Rodrigues Jr.
Ao longo do século 20, entretanto, a discussão técnica levou à compreensão de que o comportamento sexual diferente, em si, não é uma doença mental e não necessariamente representa uma. "Iniciamos o século 21 separando o que se chama de comportamento parafílico de transtornos que se associam a expressões sexuais diferentes. Mas o sexo, o comportamento sexual, a sexualidade não é a causa desses transtornos", explica o psicólogo.
Segundo Saddi, a ideia de que o fetiche seria uma doença não faz sentido, principalmente com base na teoria freudiana, na qual ele existe para acabar com uma angústia. Tanto que o fetichista busca ajuda quando, por algum motivo, o momento do fetiche não deu certo, ou seja, e ele se sentiu angustiado. "Já me contaram de uma pessoa que tinha fetiche por correntes e, ao encontrar uma moça que topou usar, ela acabou se machucando. Ao ver o pé sangrando, o fetichista foi procurar o analista".
De acordo com Verena Meloni, especialista em Psicoterapia com Enfoque na Sexualidade pelo InPaSex e membro da SBRASH (Sociedade Brasileira de Estudos em Sexualidade Humana), o fetiche pode ser problemático quando ele deixa de ser uma fantasia ou preferência sexual e passa a ser a única forma da pessoa sentir prazer. "Nesse ultimo caso, é possível que ela tenha dificuldade para manter um relacionamento afetivo-sexual de longo prazo com outra pessoa que não apresente essa característica", diz ela.
Além disso, o fetiche passa a ser perigoso a partir do momento que coloca em risco a integridade física ou emocional de outra pessoa ou de si mesmo. Enquanto a atividade sexual for realizada com consentimento e entre adultos, pode ser uma grande fonte de prazer.
Fontes: Oswaldo M. Rodrigues Jr., psicólogo e diretor do InPaSex (Instituto Paulista de Sexualidade); Luciana Saddi, membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise e mestre em psicologia clínica pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo); Janaína Sampaio, psicóloga e psicoterapeuta sexual da SBRASH (Sociedade Brasileira de Estudos em Sexualidade Humana); Verena Meloni, especialista em Psicoterapia com Enfoque na Sexualidade pelo InPaSex e membro da SBRASH (Sociedade Brasileira de Estudos em Sexualidade Humana).